Entra na casa lotérica com a fatura do mês na mão. É daquelas pessoas que fornecem motivos para que o mundo continue a crer que nesse país tudo fica pra última hora. A data de vencimento da conta que têm em suas mãos também confirma esse mote, junto com as pessoas que estão na quilométrica fila. Alguns devem estar lá pelo mesmo motivo, pagar uma conta antes que o prazo de vencimento expire e os juros, os tão temidos juros, falem mais alto. Outros, por uma vã esperança de acertar sozinho os números da Mega-Sena acumulada, a tábua de salvação de todo pobre trabalhador dessa nação nem tão pobre assim, já que se dá ao luxo de fazer sorteios desse porte.
Olha o tamanho da fila. Pensa em desistir. Mas a data impressa na fatura é um argumento muito convincente pra ser ignorado. E os juros, estes sim, têm um poder de persuasão maior ainda.Ficou.
Começou a pensar em alguma estratégia para, digamos, minimizar o tempo em que permaneceria naquele local. Ou, mais especificamente, "furar a fila", o que significa tirar vantagem dos outros. Deveria ser mais esperto que eles, ser metódico tal qual um estrategista militar analisando a fraqueza de seus adversários, e aproveitar-se disso de melhor forma possível. Ou seja, deveria pensar numa forma de furar aquela fila, pagar logo a sua conta e ir embora. É a manifestação de um outro aspecto cultural identificado como somente nosso: o tal do "jeitinho brasileiro", o levar vantagem em tudo, e etc.
Observou o lugar atentamente. Não, não havia ninguém conhecido por lá para que pudesse puxar uma conversa e assim ir ficando, ficando, ficando, até chegar ao caixa. Pensou em outra estratégia.Talvez fingisse ser deficiente, entraria arrastando uma perna, mancando com a outra, ou fingiria ser doente mental. Não, definitivamente isso não ia dar certo. Não era lá o tipo que atuava bem.
Enquanto gastava seu tempo pensando em alguma coisa, viu uma jovem com uma criança de alguns poucos meses passar à frente de todos, pagar a sua conta e sair. Algum tempo depois, viu uma outra mulher, com a MESMA criança, passar a frente de todos, e, tal qual sua antecessora ( ou cúmplice, vai saber), pagar uma conta e sair, com uma expressão das mais cínicas no rosto. Cinco minutos depois, a cena se repete. Provavelmente pra não dar na vista, dessa vez a criança estava coberta dos pés à cabeça, restando aí apenas a abertura suficiente para que ela respire. Funcionou que foi um beleza, ninguém mais pareceu notar o estratagema. Parou pra refletir: uma fila grande é motivo suficiente para uma mãe "emprestar" seu filho para qualquer espertalhão? daqui a pouco essa mulher estaria com uma banquinha do lado de fora, cobrando pelo aluguel da criança a qualquer um interessado em furar uma fila. Aplicando a lei capitalista da oferta e da procura, poderia fazer disso uma fonte de renda, observando que há uma forte demanda por esse tipo de serviço. Afinal, quem nunca pensou em furar uma fila?
Outro espertalhão mandou um senhor bastante idoso, de uns setenta e poucos anos, pagar a sua conta. Esse então passou à frente, chegou ao caixa, mas nem conseguia direito contar as notas. O malandro então, numa generosidade calculada,ofereceu-lhe ajuda, contou as cédulas, pagou a conta e foi embora, na maior cara-de-pau, porém, dessa vez sob protestos gerais dos que perceberam a artimanha. Uns mais exaltados queriam partir para a brutalidade, e uma confusão geral se formou. No meio da balbúrdia, alguns aproveitaram a distração geral para se realojar em lugares mais convenientes da já desfeita fila, e o personagem principal desse conto, percebendo a oportunidade, também tratou de fazer o mesmo.
Confusão desfeita, o espertalhão foi embora quase ileso, porém impune. Aos funcionários do estabelecimento, só restou reorganizar a fila. E os que mudaram de lugar, esses sim, se beneficiaram com isso. O personagem principal dessa história ( a essa altura do campeonato, será chamado assim, já que não consegui pensar num nome convincente) agora têm somente cinco pessoas na sua frente, e sorri satisfeito sabendo que logo sairá dali, pois foi esperto o bastante para aproveitar uma oportunidade em benefício próprio.
Chega sua vez de pagar a conta. Já contava vitória. Se imaginava contando a sua proeza para os amigos, já se via gabando-se de sua esperteza e capacidade de se aproveitar da distração alheia.
porém...
Sabem como é, alegria de pobre dura pouco, como diz um outro mote muito usado por nós, brasileiros.
Subitamente, entra no estabelecimento uma quadrilha de assaltantes, rendem todos, pegam seus pertences, esvaziam os caixas e vão embora.
Azar dos diabos. Mas, fazer o quê? Agora só resta praguejar, falar todos os palavrões possíveis, amaldiçoar o destino, culpar a Lei de Murphy.
É outra velha estória: pra todo esperto só falta um besta, pra todo malandro há um mais malandro ainda e todo mundo é besta diante de uma arma.
Semanário
Há 2 anos
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